28.7.14

Furacão

Foi num dia tranquilo que o furacão chegou sem aviso. Pouco continuou o mesmo. Muito foi revirado, quebrado e levado. Ficaram destroços empilhados, tudo completamente inutilizável.
Eu me reservei. Me guardei imersa em silêncio, ouvi o eco do nada em todos os lados.
Me distanciei das palavras. Perdi a intimidade com o papel, abandonei minha terapia gratuita. Minhas confissões ficaram presas por tanto tempo que perderam a validade.



Apaguei a luz. Apaguei a luz pra não ver as lembranças se aproximando. Pra não ver fotos no quadro do meu quarto, a saudade tomando forma e gritando vontades. Apaguei a luz pra fingir que não via toda a bagunça, pra fugir da agonia. 
Mas sou otimista. Um dia, os destroços serão retirados e substituídos por aquilo que realmente merece espaço. Um dia, as palavras voltam a fluir e o papel, alegremente, volta a me ouvir. Um dia, eu reacendo a lâmpada e tudo volta pro lugar.

22.7.14

Cartinha pra você, sociedade

Preciso ser diferente, mas o horário da academia tem que ser religiosamente reservado logo após o meu expediente.
Preciso ser original, mas o meu cabelo deve estar perfeitamente alinhado como o de todas as outras.
Preciso enxergar além das aparências, mas sair de casa sem maquiagem virou suicídio social.
Preciso dar valor às pequenas coisas, mas o que importa muito mais são as etiquetas de preço das minhas roupas.
Preciso ter identidade própria, mas se estou solteira, eu sou o problema. Tenho que me mudar inteira e torcer pra que alguém me queira.
Preciso seguir aquilo que acredito, mas chegar aos 30 anos sem marido e filhos é a receita certa para uma vida infeliz e uma velhice acompanhada por meia dúzia de gatos.
Querida sociedade, venho por meio desta lhe informar que não vou ceder aos teus caprichos. Vivo como eu acho que é certo, não me baseio por tuas regras nem teus requisitos. Desculpe a decepção, mas vai ser assim. Aceita um conselho? Lide bem com a frustração. Aprenda de uma vez: viver igual a todo mundo é absurdamente ruim.

17.7.14

Eutanásia

Estado terminal, meu amor. Essa é a nossa situação atual. De nada mais adiantam essas discussões acaloradas e aquele choro incompreendido. Já nem temos mais energia para tais esforços. Se eu te pedisse pra ficar, você ficaria? É... Teu silêncio nunca falou tão alto.
Teus olhos estão implorando para que eu desligue as máquinas que nos mantêm respirando. Você continua repetindo que somos fortes, que vamos superar mais essa barreira, mas quando tua voz fraqueja, me dou conta que é mentira sua. Você também sente a aflição que eu sinto. Não precisamos disso, sabia?
Acho que a melhor opção pra nós dois é mesmo a eutanásia. Assim poderemos preservar nossas lembranças boas e nos poupar de mais sofrimento. Merecemos isso. Merecemos olhar para trás e poder ver um caminho bonito percorrido. Merecemos a sensação de dever cumprido.
Prometo não te chamar mais de meu amor. Não te chamo mais de amor porque é crueldade com você e comigo também. Não te chamo mais de meu porque eu te devolvo a si próprio. Eu te devolvo com as mãos trêmulas e o coração do tamanho de uma ervilha, pedindo a Deus, ao destino ou a qualquer que seja o departamento responsável que se encarregue de te providenciar um futuro memorável.
A dor vai aliviando na medida em que se aceita, menino. Já não há esperança para nós dois. Mas há vida lá fora... Pra você e pra mim.

12.7.14

O que você queria ser?

- Sabe aquela mania dos adultos de perguntar a uma criança o que ela quer ser quando crescer?
- Sei.
- O que você queria ser? 
- De onde veio isso?
- Sei lá, curiosidade. Vai, me conta.
- Eu queria ser... Jogador de futebol.
- Típico.
- Definitivamente, sim.
- Não parece muito com engenharia civil.
- Definitivamente, não. E você? O que queria ser?
- Então... Quando eu era bem pequena, eu adorava brincar de escolinha e queria ser professora. Passava tarefinha pra todo mundo e fazia cadernetas de chamada em papel ofício.
- Do jeito que você é mandona, tenho certeza que seus alunos amavam suas aulas.
- Minhas aulas eram ótimas, viu? E eu não sou mandona.
- Não, nem um pouco. Vai, continua.
- Depois quis ser pediatra, mas como sangue nunca foi o meu forte, precisei abdicar de qualquer coisa que envolvesse medicina. Também quis ser astronauta. Só Deus sabe de onde eu tirei essa... Ainda quis ser ilustradora, bailarina, advogada, jornalista e terapeuta ocupacional.
- Uau. Muitos planos.
- É.
- Talvez ainda dê tempo...
- Definitivamente, não.
- Vai ver é por isso que você virou escritora. Pra viver um pouco de cada coisa numa vida só.
- Definitivamente, sim.