31.3.14

Vou me mudar

Só pra você saber, vou me mudar. Não, eu não vou sair do meu apartamento. Tudo bem, ele é pequeno, mas o aluguel é bom e é perto do trabalho. Presta atenção pra entender: vou me mudar.



Vou engolir o medo e cortar esse cabelo que você tanto admirou. Vou sair no sábado à noite sem ter hora pra voltar. Vou ler novos livros. Vou assistir a um filme no cinema sozinha. Vou me matricular num curso intensivo de francês. Vou mudar meu guarda-roupa. Vou, finalmente, experimentar aquele suco de clorofila para o qual eu sempre fiz cara feia. Ele pode ser meu novo suco favorito, vai saber.
Vou me mudar. Por dentro, por fora e por todos os ângulos possíveis. Vou descobrir uma nova eu, conhecer um lado meu que ninguém conheça, nem mesmo você. Principalmente você. Tô botando um fim nisso tudo, me livrando do peso, me presenteando com a paz que eu mereço. Se você fosse tão maravilhoso como declama, daria sem que eu precisasse pedir.
Então se caso bater saudade ou, quem sabe, você até pensar em voltar, lembra: é bem provável que não dê certo. O endereço é o mesmo - o mesmo apartamento com as mesmas janelas brancas, a mesma poltrona desgastada no meio da sala e a mesma porta de entrada que anda precisando de uma camada de tinta. Mas a pessoa que mora lá, moço... Talvez você nem reconheça.

24.3.14

Segunda-feira

Lá fora, as pessoas cronometravam cada minuto, correndo contra o tempo. Aqui dentro, o tempo parava. Nosso relógios perderam valor, largados de qualquer jeito naquela mesinha quadrada. 
Lá fora, as pessoas iam de um lado a outro com seus fones de ouvido no volume máximo. Aqui dentro, o silêncio confortava, preenchia - um podia ouvir o coração do outro em disparada.
Lá fora, as pessoas reclamavam do calor e da sensação de abafado. Aqui dentro, o que dava pra sentir mesmo era o friozinho na barriga por causa daquele medo bobo de fazer algo errado.
Lá fora, as pessoas agiam como formigas, passando umas pelas outras sem se enxergar direito. Aqui dentro, a gente enxergava mais do que qualquer um já pôde ver. Passamos um pelo outro, entrelaçamos nosso dedos, não nos deixamos à mercê.
Lá fora era só mais uma segunda-feira comum. Aqui dentro, ela virou queridinha, aquela, a nossa. Alguém pode até chegar e dizer "Que tipo de gente esquece o mundo em pleno dia útil?". Ah, moço, enquanto cai essa garoa, eu respondo simplesmente: não ligo para as outras pessoas. Ligo mesmo é pra gente.

20.3.14

Carta a um amor platônico

Acordei pensando em você. Há quanto tempo isso não acontecia? Aliás, quantos anos faz desde a última vez? Passou tão rápido...
Não sei se você sabe, mas eu tinha uma quedinha por você. Quedinha, não. Era salto livre sem equipamento adequado. Vivia cheia de marcas – todas elas eram provas de que você havia passado por mim.
Nos meus sonhos você batia ponto. No início, eu até ficava brava – com você e comigo mesma. Com o tempo, notei a sutil relação entre tuas visitas durante meu sono e a qualidade dos meus dias. Aí, rapaz, você passou a ser convidado especial esperadíssimo todas as noites.
Lembra aquele seu aniversário em que você me cobrou um abraço? Eu tremi dos pés à cabeça. Embora tenha me achado ridícula na hora, hoje gosto de pensar que aquela tremedeira foi culpa das minhas células, animadas por eu te ter mais perto por alguns segundos.
De vez em quando me pergunto se você iria gostar dessa versão minha que não conhece. Essa versão que já passou por tantas alegrias, dúvidas e tristezas. Essa versão que já riu até a barriga doer e já chorou até pegar no sono. Contaria tudo que aconteceu nos mínimos detalhes e, enquanto escutasse, você poderia fazer aquela torta caprichada. A propósito, você ainda cozinha? Adoraria ter um amigo que cozinha – frigideiras e eu nunca nos demos muito bem.
Hoje eu só queria agradecer por você ter sido o amor platônico mais doce que eu tive. Andei em nuvens durante um bom tempo por sua causa. Me machuquei porque essas coisas, hora ou outra, machucam mesmo. É procedimento padrão. Mas não esquenta, já passou. O tempo curou tudo e eu estou aqui, inteira.

Então vê se aparece. Assim do nada mesmo, de repente. Me manda um e-mail, pergunta como eu tô, me convida pra conhecer aquele rodízio de carne sobre o qual você não parava de falar. Não sou fã de carne, é verdade... Mas ainda sou fã tua, vale?

17.3.14

Lá vem você de novo

Lá vem você de novo. Lá vem você de novo com esse olhar que eu não consigo decifrar, com essa voz que derrete, com esse abraço que envolve. Lá vem você de novo com toques aparentemente não-planejados, elogios desajeitados, ouvidos prontos para um desabafo. Lá vem você de novo, como quem não quer nada, com aquele sorriso que me desconcerta, aquelas brincadeiras que me confundem, que ninguém sabe dizer ao certo se são gracinhas sem importância ou verdades ditas entre risos por meio da reação alheia.

E sabe o que eu queria? Que não fosse impressão nem imaginação minha. Que todos os toques fossem planejados, que todos os abraços fossem sentidos de fato. Que todos os sorrisos fossem por minha causa. Que todas as brincadeiras tivessem mais objetivo que o simples corar das minhas bochechas.

Aí, sim, minhas dúvidas acabariam, meus sorrisos apareceriam sem se preocupar com tantas regras e eu não tremeria na base sempre que me desse conta de que lá vem você de novo.

13.3.14

Divisão de Bens

- Vamos fazer isso de uma vez. Prolongar só machuca mais. 
- Concordo. Por onde começamos?
- Pelo meu sorriso. Acho que você deveria ficar com ele.
- Ué, por quê?
- Foi você que o colocou no meu rosto, esqueceu? Ele é seu por direito. 
- Então acho que você deve ficar com o meu olhar tranquilo. Foi presente seu, nada mais justo.
- E a nossa música? 
- Você fica com ela, claro. Foi você que ouviu primeiro e me mostrou naquela tarde de domingo, dizendo que ela te fazia pensar em nós. 
- Eu sei, mas não tenho certeza se quero... Ela foi minha música favorita por um bom tempo, mas... Acho que você a estragou.
- Se serve de consolo, eu não posso ficar com aquela comédia que assistimos no cinema. É impossível esquecer tua risada depois de cada uma daquelas piadas bestas...
- Dói lembrar? 
- Um pouco... Mas vai passar.



- Por falar em dor, preciso que você devolva minhas lágrimas. Aquelas que você disse que eu nunca mais derramaria.
- Eu não quero que você chore.
- Eu preciso. Tem alguma coisa doendo dentro de mim que não cessa. Já me aconselharam a chorar, botar pra fora, mas eu não consigo... Nem uma gota.
- Está bem, eu devolvo. Você pode ficar com as minhas lembranças?
- Quais delas?
- Aquelas em que você é protagonista. Leva também o gosto da tua boca que ficou na minha.
- Por quê? É ruim?
- Não, claro que não. Ele só me lembra, dia após dia, que você já esteve perto demais.
- Ah, entendi... Olha... Eu preciso devolver você.
- Como assim?
- Você foi meu bem mais valioso. Posso não te ter como antes, mas ainda há muito de você comigo. 
- Bem pensado. Tenho que devolver você também... Posso te contar um segredo?
- Vai fundo.
- Você me fez um bem danado. Eu não sei se quero te devolver. Não vai ser nada fácil.
- E quem disse que seria?

9.3.14

Só amigos

A gente escolhe uma mesa aleatoriamente. Sentados, passamos menos de dois minutos nos assuntos triviais. Logo estou rindo da sua cara de sono e você começa a contar sobre sua longa noite às claras. Acabo me perguntando se passei pelos teus pensamentos durante algum minuto das sete horas que você costuma dormir. Paro. Respiro. Lembro a mim mesma: somos só amigos.
Você pergunta o motivo da minha cara séria. Ao invés de dizer que a culpa é toda tua, mostro a língua e depois sorrio. Te ouço dizer que agora está melhor, que você gosta do meu sorriso. Imediatamente, sinto um arrepio. Que droga, menino. Como um mantra, eu repito: somos só amigos... Somos só amigos.


Escuto você falar sobre o filme de ficção científica assistido na semana passada. Não entendo uma palavra e teus olhos inventam de roubar minha atenção. Tento não piscar, como se fizesse uma aposta comigo mesma, e quando percebo o que estou fazendo, rio sem graça. Somos só amigos? Deve ser uma piada. 
Não precisa se esforçar tanto pra entender, menino. Está nos meus olhos. No sorriso que aparece nos meus lábios sempre que te vejo. No meu tom de voz quando te digo oi. No abraço apertado que te dou quando nos despedimos. 
Quando você se tocar, vê se acaba com a minha agonia. Chega perto, brinca com o meu cabelo, sorri pra disfarçar o nervosismo... E reúne coragem pra dizer que só um louco permitiria que nós fôssemos só amigos. 

6.3.14

Tirei

Estou sem máscara, deu pra perceber? Me livrei dela no instante em que você me sorriu olhando nos olhos. Senti que você via tudo sem dificuldade alguma e percebi que de nada mais adiantaria continuar usando aquilo.


Tirei o disfarce, deu pra notar? Joguei-o por aí, em um canto qualquer, depois que você me contou aquele segredo às três e quinze da manhã. Você me pareceu tão verdadeiro que tive vontade de ser também. Não faria mais sentido nenhum continuar fingindo.

Aposentei minha armadura, deu pra reparar? Você não imagina o alívio que é andar sem aquele peso todo... Larguei-a por aí porque imaginei que você pode fazer bom uso de uma chance. Aprende e leva pra tua vida, moço: armaduras não são bem-vindas quando se tenta uma chance em alguma coisa.

Então pensa bem. Pensa bem se vai continuar com todos os adjetivos doces remetidos a mim, todos os olhares carregados de significado, todo aquele carinho que você nem se preocupa em esconder. Se for só brincadeira, passatempo ou vontade que dá e passa, para. Você já sabe, estou sem armadura. Não vai dar certo e vai doer.


Mas se não for... Ah, moço, se não for brincadeira, me dá logo essa notícia pessoalmente e gruda em mim. Gruda e nunca mais me larga.